A DESCONFIANÇA AUMENTA A VULNERABILIDADE
Quando os aviões fortemente automatizados foram postos em serviço, os pilotos ficaram preocupados, diante de sistemas que dominavam mal e, ao mesmo tempo, ávidos de progresso na integração dos dados do voo, ou na representação visual da aeronave e de seu ambiente.
Aparentemente, a informatização enriquecia a diversidade do trabalho e lhe trazia um acréscimo de eficiência. Mas, em longo prazo, cada geração de aviões ou de dispositivos novos veio se inserir numa mesma lógica: tudo pode e deve ser racionalizado, quantificado e digitalizado, sendo o operador humano obrigado a se comportar como um supercomputador, intercambiável com a máquina, o que traz para ele a desqualificação e a desvalorização. Pilotar exigia uma formação científica associada a uma extrema habilidade nas manobras aéreas; agora, o ofício se aproxima do trabalho burocrático no computador. O piloto era o único mestre a bordo, como o capitão de um navio na tempestade; agora, autômatos e redes de telecomunicação o ligam a outros centros de decisão que permanecem no solo.
O turismo de massa e a queda das tarifas se traduzem por uma forte pressão sobre as condições de trabalho e sobre o nível de recrutamento. Nas linhas de "bate e volta", a tripulação se afoba, beirando os limites da segurança, para respeitar os horários e as escalas. Em certas companhias de transporte a preços baixos, ela terá que fazer tudo: do carregamento das bagagens à limpeza. Acrescenta-se a isso um sentimento de espoliação: os centros de estudos alimentaram-se no capital de observações acumuladas durante os vôos comerciais para constituírem, progressivamente, uma ciência do voo. O engenheiro extraiu a perícia empírica dos pilotos, cujos conhecimentos, agora, são integrados aos autômatos.
O antropólogo Marcel Mauss já havia destacado: a técnica só será eficaz se reinar a confiança. Ora, no que se refere à aeronáutica, o equilíbrio dos privilégios e contra-privilégios entre inventores e usuários do progresso foi rompido. A desconfiança aumenta a vulnerabilidade cotidiana. Principalmente porque os idealizadores do totalmente-digital também são seres humanos e cometem erros que podem levar a acidentes.
Para os engenheiros dos centros de estudos, a totalidade do universo físico e humano pode e deve ser explicada por leis físico-matemáticas. Um processo de decomposição da realidade em elementos simples permitiria a construção de uma sociedade menos vulnerável: por exemplo, para a aviação, a realização de um voo sem perigo.
Ora, tudo se revela interdependente; ao decompor, e, portanto, ao introduzir descontinuidades, criam-se às vezes outros riscos. O atentado terrorista de 11 de setembro de 2001 é revelador dos perigos corridos por causa do procedimento cartesiano clássico. Ele descompôs os domínios de ameaça, mas em dois universos distintos, um civil e um militar. Os construtores aéreos desenvolveram pesquisas visando melhorar a segurança, mas apenas para os passageiros e tripulantes: de fato, tornou-se raro um desvio de avião acabar mal. Paralelamente, o exército havia desenvolvido sistemas de defesa antimísseis. Mas as duas providências não se encontraram. Nunca se cogitou, seriamente, que um avião civil de passageiros pudesse se transformar em míssil de destruição em massa.
A segurança se inspira na organização taylorista do trabalho em usina. A organização do céu segue o modelo experimentado – de linhas e intervalos horários - que os engenheiros de comunicação implantaram há dois séculos. No desenrolar de cada voo pululam imprevistos que fogem desse sonho de perfeição: bastou um pedaço de ferro esquecido na pista para derrubar um Concorde...
Pensa-se dominar o "fator humano" – quer dizer, o piloto, designado como a fonte maior de acidentes – colocando-lhe as amarras dos regulamentos e envolvendo-o com uma rede de ajudas e vigilâncias informáticas. Como Argos, ele é revestido de uma pele coberta de sensores cada vez mais numerosos, de sondas e outros alarmes; desse modo, como o príncipe de cem olhos do mito grego, ele deveria ver tudo. Mas, às vezes, o resultado é o inverso: o excesso de segurança pode embotar seu espírito crítico. É o que indicam também as observações sobre a segurança rodoviária: dirigir carros torna-se tão confortável e tranqüilo, que a vigilância do motorista é embotada. E Argos, adormecido, pode ser atingido.
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